26 fevereiro 2017

O espelho

06:00…                          06:10…           06:20…

É o horário máximo que posso adiar. Ainda assim, meus olhos estão pregados. Enquanto a luz permanece apagada, meu corpo se retorce preguiçosamente na cama, sem forças. Num ímpeto suicida, estico o braço ao máximo e toco no interruptor. O clarão toma o quarto, meus olhos se espremem num gesto desesperado de resistência, mas é inútil, a energia que acendeu a lâmpada também me despertou.

Este rito se repete diariamente, como se o grito de Deus em Gênesis fosse necessário a cada manhã: ‘Haja luz!’ – e o fôlego de vida, como todos sabem, decorre desta primeira ordem. Antes de chegar ao trabalho, às 08:15, outras etapas rotineiras precisarão ser cumpridas. Caminho para o banheiro, urinar é minha maior necessidade neste momento. Penso no relatório que preciso entregar antes das 12:00. Com a ponta dos dedos, esfrego o canto do olho direito retirando as pequenas pedrinhas de remela ressecadas que se formaram durante a noite. Dou descarga e sigo para o próximo passo: escovar os dentes.

(Não se preocupe, este texto não é a narrativa de uma manhã normal, como costuma ser a minha e a sua. Fosse assim, não justificaria o gasto com papel em um mundo preocupado com a sustentabilidade. Conto essa história porque algo aconteceu comigo diante do espelho, às 06:27, quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017.)

Pouco antes de puxar a escova do copo, encaro meu próprio rosto no espelho. O cabelo estava amassado, mais desgrenhado que o normal. Passo as mãos na direção que costumo penteá-lo, pressionando levemente para que ele se acalmasse. A situação estava difícil, a cada gesto de minhas mãos, o miserável parecia crescer em rebeldia. Dou uma trégua. Pego a escova de dentes, a pasta e sigo com o protocolo. No espelho, sou um rapaz descabelado, com espuma escorrendo pelos cantos da boca. Dez vezes de um lado, dez vezes do outro, em cima, em baixo, cuspo, enxáguo, cuspo, sorrio para o espelho.

Noto que há uma remela no canto do olho direito. Retiro novamente. Molho as mãos e esfrego no cabelo, repito a operação mais duas vezes. A situação só piora. Me aproximo do espelho, a ramela ainda está lá. Água, sabão, esfrego o rosto com vontade, tentando tirar, juntamente com a sujeira, a má sorte daquela manhã. Enquanto seco o rosto, sinto a boca amarga, sem a refrescância da pasta de dentes. Olho para o espelho, é como se acabasse se levantar da cama: cabelo bagunçado, dentes grudentos, remela no canto do olho direito. O coração acelera. Penso estar preso em um sonho idiota. Dou um tapa no meu próprio rosto, não é sonho.

Olho novamente para o espelho e começo a falar comigo mesmo: “O que você vê neste reflexo é apenas a superfície. Para mim você pode camuflar tudo, mas quem é você por trás desta imagem? Não há coisas mais importantes para arrumar do que o seu cabelo?”

Passo novamente a mão na cabeça e, desta vez, o penteado se assentou. Me aproximo, cara a cara com o espelho, e não há mais remela no olho. Afasto meu rosto e vejo o reflexo perguntar mais uma vez: “Não há coisas mais importantes para arrumar do que o seu cabelo?”

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