22 agosto 2016

Eu no transito

Eu no trânsito. Ela no carro de traz, em meu espelho retrovisor. Olha para o lado quase indiferença. Exibida! Revela no seu perfil um nariz italiano, lindo! Ando mais um pouco e ela segue atrás. A lentidão permite que eu fique fixo ao espelho. Os óculos que ela usa disfarçam bem, mas ela já percebeu. A boca séria mente ainda melhor. Sou um voyer de transito. Se fosse na janela de casa, a veria dançando alguma música estúpida. Elas reproduzem, sem saber, as comédias românticas. Mas aqui quem dança é o carro que me contraria trocando de faixa. Me ultrapassa sem olhar para o lado. Tem um adesivo de borboleta preta no porta-malas. Por que preta? ?Agora fico atrás dela. Continuo vendo seu rosto pelo espelho da lateral esquerda. Para isso, fico com um terço do carro na faixa do lado. Não vou chegar a tempo no trabalho. O chefe vai olhar com aquela cara “aconteceu alguma coisa?”. E pela terceira vez este mês “o trânsito”. Vou descer do carro, caminhar até ela e pedir um beijo. Pelas roupas que usa, deve ser uma nojentinha. Hippie chic. Duvido que conheça alguma música do Caetano que não tenha tocado em novelas. Ainda assim valeria o beijo. Ou pelo menos a cara de espanto ao me ver pedi-lo. Aposto que ela beija! Os carros ao lado começariam a buzinar. Todos veriam algo um pouco acima da mediocridade, neste transito, nesta cidade. Ela se movimenta precisamente. Enquadra os melhores ângulos no espelho. Se eu tivesse uma câmera... preciso guardar estas imagens para um dia reproduzi-las. Minha expressão deve estar ridícula. Realmente, sou ridículo. Deixei de olhar para nariguda por algum tempo e vi a cara de idiota com a qual me apresento. Por isso ela disfarça. Por isso eu insisto. Ela não merece muito mais que isto. Aliás, o seu namorado – deve ter um – é provavelmente um baixinho, quieto. Do lado dele ela também parece uma idiota. Mas aqui disfarça, parece superior a mim. Deu a seta para direita. Eu seguirei em frente. O transito sempre resolve andar quando elas dão a seta. Eu poderia ser o baixinho, quieto. Anda mais rápido porque escoa, pessoas fogem pelas entradas. Eu não conheço os caminhos alternativos. Faria essa menina feliz, mas ele nem me ouviu dizer “até nunca mais!”

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Outro texto do mesmo e-mail enviado para mim mesmo quando saí da Coordenadoria de Educação Ambiental em 2011.

foto de 15-fev-2014 (semáforo de pedestres - Vila Madalena)

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