Não tem remédio que não seja amargo

Vez ou outra, um filme ou livro se torna o centro das discussões das igrejas cristãs. Como tenho menos de trinta, meus exemplos não são históricos, mas ilustram bem este alvoroço artístico-eclesiástico! Vamos pontuar alguns.

Quem não se lembra dos debates envolvendo 'Matrix'? A escolha entre as duas pílulas é relembrada até hoje entre pastores que arriscam uma abordagem contextualizada em suas pregações. 

Outro muito mais explícito foi o sanguinolento, 'Paixão de Cristo'. O retrato das últimas horas de Jesus focou nos detalhes bíblicos, sendo preciso em todos os insultos que ele sofreu, ainda que não tenha deixado claro a razão pela qual o Filho de Deus se submeteu a morte. 

Mais recentemente, 'Crônicas de Nárnia' tornou-se um ícone pela famosa cena de morte e ressurreição de Aslan, o leão! Embora o filme tenha inúmeros símbolos da cultura celta e outras referências bastante subjetivas, foi bem acolhido pela igreja (talvez pelo respeito ao autor da obra, C.S. Lewis).

Para não ficar só nos filmes, vou passar rapidamente por alguns livros. 'A cabana', 'O monge e o executivo', foram muito elogiados, enquanto 'Código Da Vinci' e 'O segredo' subiram aos púlpitos para tornarem-se anti-exemplos.

A fórmula é relativamente simples: artistas não (necessariamente) cristãos, produzindo conteúdo e entretenimento para o público não cristão, sempre chamam a atenção dos cristãos quando abordam temas, personagens ou valores do universo cristão! E não por acaso, estes debates calorosos voltaram nesta semana de estréia do filme 'Noé'!

De um lado, concentram-se as pessoas que defendem o relato das escrituras tal qual foram escritas. Do outro, um público que argumenta não esperar muito mais que isso de uma produção hollywoodiana. 

Dentro desse dilema, concordo com o grupo que zela pelo texto bíblico e, neste sentido, o filme está realmente longe de ser fiel a história narrada no Gênesis. Anjos caídos protegendo os seres humanos; apenas um filho de Noé 'desposado'; a suposta intenção de Deus em acabar com a raça humana e até mesmo o vovô Matusalem foi vítima, sendo convertido em uma espécie de pajé maluco. Realmente, se você está buscando um filme que represente a vida de Noé tal qual a Bíblia descreve, esqueça! Você vai passar raiva.

Por outro lado, entendo que em nenhum momento o diretor do filme teve a intenção de apresentar um registro realista de Noé. Vendo o filme notamos rapidamente que seu compromisso não é com as escrituras sagradas e sim com o roteiro que escreveu. O diretor não errou sem querer, mas optou por fazer um filme de ficção em vez de uma pregação com 3 pontos! 

Com isso em mente, tenho a sensação de que 'Noé' é um filme muito mais ambientalista do que bíblico! Um filme bastante atual que trata do relacionamento dos homens com o planeta e entre si. O que estamos fazendo com a criação? Como estamos tratando nossos irmãos? 

Uma segunda e importante camada do filme, trata da postura que podemos assumir em nosso relacionamento com o Criador, fala da queda, do desejo megalomaníaco de nos tornarmos deuses e fala também de obediência, justiça e amor.

Mas o debate entre nós crentes está só começando! Ainda estamos discutindo porque Noé e seus filhos não estavam tão velhos no filme quanto o relato bíblico aponta. E não fazemos isso porque somos tontos ou superficiais, mas sim pelo cuidado que temos ao tratar da palavra de Deus.

Penso que se este mesmo enredo fosse adaptado para uma realidade futurista em vez dos primórdios da existência humana; se tivéssemos extraterrestes no lugar dos anjos de pedra; se no lugar da arca fosse feito um foguete gigante... Enfim, se invés de chamar 'Noé' o filme chamasse 'Zoeh', daríamos muito mais destaque ao que realmente nos importa. Limparíamos as ilustrações que não nós servem e faríamos ótimas aplicações para falar de soberania divina e orgulho humano, juízo e graça, condenação e esperança. 

Sinto que não foi dessa vez, mas quem sabe a continuação de Star Wars não nos permita isso, né?