Rodavam
e rodavam numa ciranda envolvente, cheia de voltas e idas e palmas bem
compassadas. Ela pensou viver naquele momento a maior alegria de sua vida, essa
que se encontra comumente com o nome de esperança. Seu par, fascinado pela
beleza da moça e do baile, lhe prometia mundos e tinha fundos para isso. A
música tocava acentuando o ritmo da dança e ela via correr no meio do salão, os
filhos que ainda não tinha, comendo os maravilhosos doces cheios de requintes
de chantilly, que já se conformara em saborear diariamente pelos próximos anos.
Todos giravam loucamente segundo a coreografia, e quando paravam um instante,
num passo quase russo, era o salão quem rodava. Junto com as estruturas, no
contratempo dos sonhos juvenis, giravam os ponteiros do pequeno relógio de
pulso que, apesar de não combinar com o vestido, resolveu trazer para não
perder a hora.
Tão
logo deu meia-noite (uma hora tinha que dar), a moça empurrou violentamente seu
acompanhante, deu um resmungo de dor e disparou numa caminhada trôpega em
direção a porta dos fundos. Ele, tão tonto quando se poderia estar, não atinava
as pernas na tentativa de alcançá-la. Entre todos os interessados que vieram
para o baile, a moça desapareceu num estilhaço de vidro e o som jazzístico do
sapateado trincando cortou o ritmo da valsa e o pezinho delicado número 36/37.
O
rapaz pediu aos empregados que juntassem todos os cacos espalhados pelo chão e
levassem ao melhor vidraceiro da cidade, para que pudesse ser reconstituído o
fino calçado de sua pequena. Antes disso, deixou claro que qualquer tentativa
de sabotagem como copos caindo de mãos descuidadas ou ferimentos que ocultassem
sob a carne o menor pedaço daquele sapatinho, seria punido, sem pena, à morte.
E assim foram recolhidos minuciosamente os “vestígios da noite”, expressão
poética usada por um jornalista na matéria de capa do dia seguinte.
Passadas
duas semanas de trabalho para o vidraceiro e de espera para o rapaz, o sapato
ficou pronto. Mal dava pra acreditar que aqueles restos, que mais pareciam
açúcar cristal, pudessem voltar a ser a mesma peça fina que embalou a pequena
naquela noite. Tamanha perfeição só poderia pertencer a ela (como dançava bem
aquela criatura) e neste espírito foi atrás do corpo que se encaixasse no calçado.
Logo
na primeira casa em que parou, vieram três irmãs gêmeas, com os seis pezinhos
brancos em pantufas cor de rosa. Descalçou lentamente cada um dos pés direitos.
Ficou olhando-os atentamente, analisando a forma, as unhas, buscando no ar
algum cheirinho que pudesse facilitar sua escolha. Não havendo diferenças
significativas nestes quesitos, tomou o que tinha um sinal próximo ao dedo
mindinho para iniciar sua saga. Para seu espanto o sapato vestiu como uma luva
e enquanto pensava numa justificativa mística para explicar o ocorrido, a
histeria tomou conta da casa. A da pintinha gritava cobrindo de beijos o rapaz,
as outras duas reclamavam com todos os verbos sabidos a vez de provarem o
sapato e a mãe não sabia como resolver a situação, pois era viúva e aquela
oportunidade vinha em boa hora. Decidiu que naquela casa todas as mulheres
iriam provar o sapato. Foi uma luta para tirar o calçado e o rapaz daquela que
se sentia vitoriosa. Veio o segundo pezinho da casa, e da mesma forma o
sapatinho ficou muito confortável, a menina se jogou nos braços do rapaz e
aquela bagunça. Mas ele não deu muita corda para a discussão. Arrancou o sapato
desta, vestiu na outra e confirmou sua suspeita: as três têm pés do mesmo
tamanho! Pensou que sendo gêmeas e praticamente iguais, seria impossível saber
qual delas havia girado e rodado com ele no baile. No instante seguinte, ouviu
uma voz dentro de si dizendo que sendo gêmeas e praticamente iguais, poderia
ficar com qualquer uma sem prejuízo de conteúdo. Não chegou a pensar nas três
juntas em sua cama porque a mãe das moças acabará de vestir o sapato, e lhe
caiu bem!
***
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