Na manhã seguinte, ele acordou com um suspiro tão profundo que
quase lhe estoura os pulmões. O coração e os olhos escancarados viram um mundo
diferente. Não que o quarto estivesse mudado, ainda estavam lá a mesma
mobília, os mesmos livros no criado-mudo... mas havia um cheiro novo, uma coloração
vibrante, algo em seu corpo que fazia tudo ser inédito.
E com o estranhamento natural de quem se levanta nessas
condições, foi desconfiado para as tarefas cotidianas. O gosto da pasta de dente, a
temperatura da água, a macies da toalha de rosto pendurada na janela do
banheiro, o som da descarga, da cafeteira, o frio da geladeira, as cores das
frutas, o cheiro do café, mais açúcar no café, pão, manteiga, celular no bolso,
porta de casa, passa a chave, trancada.
No caminho para o ponto de ônibus, olhava para todos os
elementos da paisagem e sentia uma transformação, uma espécie de incomodo. Era
como se algo lhe chamasse para entrar nas casas, bater de porta em porta e
conhecer as pessoas. Falar com o dono daquele vira-lata latindo na garagem, dar
bom dia para a senhora que mora no final da rua e que sempre está reclamando
enquanto empurra as folhas caídas para o bueiro. Quem sabe até dançar na
calçada como se fosse protagonista de um musical! Timido como era, não podia ter essas idéias por si só...
Ignorando os desejos mais esdruxúlos, limitou-se ao desafio de
dizer bom dia a velha reclamona, tendo o gesto como mais uma experiência nova naquela manhã. Ainda assim, teve receio quanto conseguiu avistá-la a uns 200 metros de distância e se pôs a ensaiar: “Bom dia, senhora. Dormiu bem esta noite?”, “Quanta
folha, em Dona Maria?! Bom, tenha um bom trabalho e um bom dia”, mas “Bom dia...” foi o que saiu na hora.
A senhora continuou varrendo a calçada sem tirar os olhos das folhas. Ele seguiu seu caminho meio envergonhado por ter se rendido a idéia estúpida de ser gentil. Deu
mais alguns passos deixando-a para trás quando ouviu a retribuição a gentileza:
Bom dia.. Virou-se e percebeu que algo estava errado com a mulher. Seu rosto parecia
azulado, os olhos fundos e vazios. Então, algo o atraiu para a veleha. Aproximou-se com a lentidão e a
curiosidade dos medrosos. A velha parecia um zumbi de filme B. Sua voz rouca e
hálito azedo disseram novamente, “bom dia.. é, faz tempo que não ouço isso, viu?” e
sorriu com dentes verdes de aquário sujo.
Este foi seu primeiro contato com a morte naquele dia.
Adorei!!!
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