16 agosto 2016

Juízo (primeiro conto)

Que eu me lembre, este foi o primeiro conto que escrevi! Encontrei o arquivo no anexo de um e-mail enviado para Aninha em dezembro de 2005. Copiei e colei aqui, pois não seria justo reescrevê-lo depois de tanto tempo.

Amanhã publicarei a 'crítica' que recebi do meu primo Dudu na época!

***

Nunca se ouviu falar tanto em fim de mundo como naqueles dias e não foi por menos. Os sinais eram claros – terremotos, enchentes, furacões, guerras, fome – os profetas convincentes e os cientistas enfáticos. Estava em todos os canais de televisão, nos jornais, nas revistas, e mesmo nas interpretações dos sagrados livros, das cartas e todos os outros aparatos dessa natureza. O Grande Dia, com data e hora marcada, se aproximando de maneira violenta, não poderia deixar de causar um mal estar entre as pessoas. Apesar do clima de desconfiança e de brincadeira, presente no inicio da polêmica, com o passar dos dias a certeza era maior e atingia a quase toda gente. Muitos já não levantavam de suas camas para seguir a rotina de trabalho, outros arrumavam suas malas sem saber ao certo o porquê. Houve também uns poucos que se suicidaram por medo do que viria – foram poucos, a maioria alimentava a curiosidade. 
O único cidadão que pareceu não ser atingido foi o Cap. Carlos Aristides. Homem de idade, carrancudo, sozinho, metido a ler e pensar sobre filosofia. Aposentado pelo exercito, ainda muito jovem, por invalides. Ocorreu que estando ele na orientação de um treina-mento, foi ferido à bala por um soldado inexperiente. A perna atingida era manca e agora se movimentava com o apoio de uma bengala. Quase não saia de casa, poucos amigos, fazia suas refeições e reflexões na padaria, andar térreo do prédinho onde vivia. O apartamento era pequeno e repleto de livros, mal dava pra se movimentar. Virada para a janela, uma poltrona das mais confortáveis em que o velho passava seus dias, lendo e fumando o velho cachimbo à luz que entrava. Quando esta já não lhe era suficiente para a leitura, o cobertor saia da cesta, que ficava ao lado, para trabalhar sobre o ronco do Capitão. Às vezes dormia sem se dar conta e acordava com o cachimbo na boca, sem fumo ou apagado. Havia também um banheiro simples, pia, vaso e chuveiro, mas limpo e um quartinho que ficou aluga-do para um estudante por dois meses e trancado por trinta e dois anos.
Homem como o Cap. Carlos Aristides não acreditava em nada. Para ele, fim do mundo era conversa pra boi dormir, não importa o que falassem. Não fosse ler Voltaire, Nietzsche, Marx, Darwin, Freud, Schopenhauer, Sartre, seria possível acreditar e ficar atordoado com essa historia. Mas não, após as reflexões crias por sua biblioteca, tomara para a sua vida ser céptico. Mas como homem serio, levou o ceptismo na ponta do lápis e não seguia doutrina nenhuma, nem procurava em autores a explicação para o funcionamento do mundo ou das relações sociais. Agora já não esperava que alguém lhe apresentasse uma nova teoria; continuava lendo pela mais newtoniana inércia, e pensando por ser casmurro de berço. Via a agitação das pessoas pela janela e nem por isso dava de fazer chacota ou temer o que viria, apenas pitava seu cachimbo e cuspia.
Do outro lado da janela, o mundo acabaria em poucas horas. O sol descia o horizonte pela ultima vez e oposto a ele, nuvens carregadas de trovões se aproximavam faiscando seus raios amarelos. As igrejas punham toda vontade no tocar dos sinos, convidando os fieis e desesperados para as preces finais, enquanto na avenida as escolas de samba ensaiavam a bateria, se preparando para o carnaval que surgia, com direito a lança, confetes e serpentina. E ambas foram tão bem sucedidas que não houve, exceto o Capitão, quem ficasse em casa. Nunca se viu tanta folia e azaração nas ruas, nem se ouviu tanto murmúrio e clamor nos templos. Fato interessante é que muita beata deixou a cruz para cair na ganda-ia e muita menina faceira tratou de arrumar um terço.
Não demorou muito, desceu uma neblina densa a ponto das pessoas não poderem ver além de uns poucos centímetros a sua frente. Nesse momento o samba, até então bem sincopado, perdeu seu ritmo e logo silenciou, pois já não era possível enxergar o mestre de bateria; os gritos de medo e a correria entre os foliões vieram tomar o som ambiente. O gemido de um alarme, vidros se quebrando, choro de adultos e crianças completaram a sinfonia. Lojas e casas passaram a ser alvo dos saqueadores e desabrigados, gente de bem em outro tempo. De repente algo vem cortar o calor do empurra-empurra e gelar a espinha dos que estavam nas ruas. Começou com um ponto de luz, avermelhado, cortando a neblina e em poucos instantes era uma legião luminosa como se as estrelas descessem a Terra. Eram os religiosos com tochas nas mãos. No meio deles o andor puxado por um carro de bois e com luzes de natal para dar destaque. Caminhavam lentamente cantando uma melodia seca e arrastada, em latim. Do outro lado, os carnavalescos retomaram a sua posição formando uma ala de resistência à passagem dos fieis. Era a batalha final, entre virtudes e vícios, que se iniciava.
Minutos antes desses acontecimentos, o Cap. Carlos tomava seu banho. Como já era de se esperar, a energia foi cortada, talvez um black-out proposital – as pessoas estavam realmente loucas. O banho frio já não interessava ao capitão; se enrolou numa toalha e foi atrás de seu antigo lampião. Encontrou-o no lugar onde havia deixado há dois anos, quando usou pela ultima vez. O querosene que alimentaria a chama não era muito, mas o suficiente para aquela noite. Acendeu o pavio, vestiu a roupa de dormir, que podia ser qualquer uma, buscou um de seus livros, fechou a janela e sentou-se na poltrona. O livro, não por acaso, tinha o conto “A cartomante”, de Machado de Assis. Ele tinha escolhido para aquela noite essa leitura, pois achava divertidíssimo o desfecho da narração e também julgou o texto pertinente ao momento que estava vivendo.
A pouca luz do lampião somada ao barulho infernal de samba que vinha da rua dificultavam a leitura do velho. Mais o fogo fraco que a folia, mas ele preferia por a culpa nos da rua, tanto que tomou a bengala e foi ate a janela tirar satisfação. Ele nunca fora de criar caso, mas tudo tem um limite e esse foi ultrapassado quando os carnavalescos passaram a tocar sem a menor preocupação com o ritmo. Abriu a janela e não encontrou o que esperava. Na verdade, não encontrou nada, pois a rua, a cidade, e quem sabe o mundo estava coberto por uma nuvem rasteira. Então voltou para a poltrona, pegou o livro e tentou ler mais algumas páginas. Foi em vão, o seu coração disparado repassava a inquietação para os olhos, que não conseguiram mais se fixar em ponto algum. Ora olhavam a janela aberta e a neblina que entrava em seu apartamento, ora olhavam o livro na tentativa de concluir a leitura, ora passavam pelo fogo do lampião, cada vez menos brilhante. Fez-se silencio na rua. O velho fechou os olhos para tranqüilizar a alma.
Nessas circunstancias, veio em sua mente o final do conto. Não se sabe se por lapsos na memória ou pela carência do estilo, aquela historia, que lhe causava risos, pareceu trágica, estúpida. Sentiu uma fisgada no peito. Entra na sala um ruído longo e estridente – eram as trombetas do apocalipse. O Cap. abriu os olhos, mas a imagem era turva. Passou a mão nas vistas para tirar o embaço, que insistiu em ficar. A chama, que avermelhava a neblina, parecia sentir o frio do ambiente e se acovardava. Outros sons, gritos de desespero, choro e ranger de dentes – os dentes do Capitão – invadiam o apartamento. Este já não parecia tão familiar, suas dimensões oscilavam do infinito ao tamanho de uma caixa. Os livros se perdiam no espaço e do chão surgiam enormes cordilheiras formando um cerco. Agora, eram os cavaleiros que se aproximavam com suas espadas de fogo – foi possível ouvir sua cavalgada e ver a luz de suas laminas. Um coral celestial anunciou a chegada do Juiz.
O Cap. Carlos Alvarenga sentiu uma dor fina, uma agulhada quente que lhe subia pelas costas. Com o rosto transfigurado pela dor ele segurou firme sua bengala e arriscou alguns passos em direção a janela. A intenção era fechá-la para que a credulidade daquela gente e a maldição imposta sobre ela, quer seja pelo céu quer seja pelo inferno, não viesse afligir quem nada tinha com isso. Mas a cada movimento realizado com custo pelo velho, dobrava a distancia, mais forte cantavam os anjos e gritavam os demônios. A janela era apenas um ponto no vazio, rodeada de montanhas angulosas e sombrias. Deu mais um passo, abriu-se uma vala, pisou em falso, vacilou a bengala e caiu para não mais levantar. Olhou para traz e viu o lampião a menos de um metro. O seu vidro sujo pela fuligem pareceu adorável ao velho capitão. Pode ver aquele pavio sustentando o fogo que logo se apagaria: era chegado o fim.

Na manhã seguinte, eram só corpos jogados no chão. Por todos os lados se via restos de uma civilização. Se restasse algum antropólogo, esse teria muito trabalho em descobrir a causa daquela destruição. Havia evidencias de guerra, mas também podia ser a celebração de uma festa ou de um rito sagrado. Os artefatos encontrados seriam dos mais variados, criando um ambiente ambíguo. No entanto, não foi preciso nenhum cientista para explicar o que ocorrera naquela noite. Aquelas pessoas jogadas nas ruas sabiam bem toda a historia. Bastou que uma delas levantasse de seu sono. Viu o sol brilhando novamente, olhou tudo a sua volta e gritou pela vida. Então foram outros que se levantaram e acharam maravilhoso o engano cometido dias atrás. Afinal, não era o fim do mundo. Quis os céus adiá-lo ou teriam os homens extrapolado as evidencias? Não fez muito diferença para quem ficou. Houve sim, um instante de vergonha do que se passou e mesmo medo do que viria, mas logo entenderam que, tento todos cometido o mesmo erro, estavam livres de acusação. Essa lógica trousse paz e liberdade para as pessoas.
Já eram cinco da tarde, quando um dos freqüentadores da padaria e amigo do Cap. Carlos, lembrou-se dele. Se deu conta que este, velho militar, homem sério e convicto de suas idéias, podia julgar e condenar a atitude ridícula tomada pelos outros. Ele foi o único que se manteve firme, não mudando seu posicionamento apesar de toda a pressão e instabilidade social. O Cap. Carlos estava acima de qualquer outra criatura na face da Terra. Mas não seria capaz de desfrutar os seus benefícios.
Seu amigo de refeições e reflexões subiu ao apartamento, bateu na porta do velho pela primeira vez, e aguardou. Não obtendo resposta empurrou a porta. Viu os livros jogados no chão, a poltrona virada de costas para ele, a janela aberta e o lampião apagado. Deu mais alguns passos em direção a poltrona, chamando pelo capitão...
Instantes depois subiram muitas outras pessoas ao apartamento, entre elas um médico que constatou o infarto. O mundo estava livre do juízo.

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