Amanhã publicarei a 'crítica' que recebi do meu primo Dudu na época!
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Nunca se ouviu
falar tanto em fim de mundo como naqueles dias e não foi por menos. Os sinais
eram claros – terremotos, enchentes, furacões, guerras, fome – os profetas convincentes
e os cientistas enfáticos. Estava em todos os canais de televisão, nos jornais,
nas revistas, e mesmo nas interpretações dos sagrados livros, das cartas e
todos os outros aparatos dessa natureza. O Grande Dia, com data e hora
marcada, se aproximando de maneira violenta, não poderia deixar de causar um
mal estar entre as pessoas. Apesar do clima de desconfiança e de brincadeira,
presente no inicio da polêmica, com o passar dos dias a certeza era maior e
atingia a quase toda gente. Muitos já não levantavam de suas camas para seguir
a rotina de trabalho, outros arrumavam suas malas sem saber ao certo o porquê.
Houve também uns poucos que se suicidaram por medo do que viria – foram poucos,
a maioria alimentava a curiosidade.
O único
cidadão que pareceu não ser atingido foi o Cap. Carlos Aristides. Homem de
idade, carrancudo, sozinho, metido a ler e pensar sobre filosofia. Aposentado
pelo exercito, ainda muito jovem, por invalides. Ocorreu que estando ele na
orientação de um treina-mento, foi ferido à bala por um soldado inexperiente. A
perna atingida era manca e agora se movimentava com o apoio de uma bengala.
Quase não saia de casa, poucos amigos, fazia suas refeições e reflexões na
padaria, andar térreo do prédinho onde vivia. O apartamento era pequeno e
repleto de livros, mal dava pra se movimentar. Virada para a janela, uma poltrona
das mais confortáveis em que o velho passava seus dias, lendo e fumando o velho
cachimbo à luz que entrava. Quando esta já não lhe era suficiente para a
leitura, o cobertor saia da cesta, que ficava ao lado, para trabalhar sobre o
ronco do Capitão. Às vezes dormia sem se dar conta e acordava com o cachimbo na
boca, sem fumo ou apagado. Havia também um banheiro simples, pia, vaso e
chuveiro, mas limpo e um quartinho que ficou aluga-do para um estudante por
dois meses e trancado por trinta e dois anos.
Homem como o
Cap. Carlos Aristides não acreditava em nada. Para ele, fim do mundo era conversa
pra boi dormir, não importa o que falassem. Não
fosse ler Voltaire, Nietzsche, Marx, Darwin, Freud, Schopenhauer, Sartre, seria
possível acreditar e ficar atordoado com essa historia. Mas não, após as
reflexões crias por sua biblioteca, tomara para a sua vida ser céptico. Mas
como homem serio, levou o ceptismo na ponta do lápis e não seguia doutrina
nenhuma, nem procurava em autores a explicação para o funcionamento do mundo ou
das relações sociais. Agora já não esperava que alguém lhe apresentasse uma
nova teoria; continuava lendo pela mais newtoniana inércia, e pensando por ser casmurro
de berço. Via a agitação das pessoas pela janela e nem por isso dava de fazer
chacota ou temer o que viria, apenas pitava seu cachimbo e cuspia.
Do outro lado
da janela, o mundo acabaria em poucas horas. O sol descia o horizonte pela
ultima vez e oposto a ele, nuvens carregadas de trovões se aproximavam
faiscando seus raios amarelos. As igrejas punham toda vontade no tocar dos
sinos, convidando os fieis e desesperados para as preces finais, enquanto na
avenida as escolas de samba ensaiavam a bateria, se preparando para o carnaval
que surgia, com direito a lança, confetes e serpentina. E ambas foram tão bem
sucedidas que não houve, exceto o Capitão, quem ficasse em casa. Nunca se viu
tanta folia e azaração nas ruas, nem se ouviu tanto murmúrio e clamor nos
templos. Fato interessante é que muita beata deixou a cruz para cair na ganda-ia
e muita menina faceira tratou de arrumar um terço.
Não demorou
muito, desceu uma neblina densa a ponto das pessoas não poderem ver além de uns
poucos centímetros a sua frente. Nesse momento o samba, até então bem
sincopado, perdeu seu ritmo e logo silenciou, pois já não era possível enxergar
o mestre de bateria; os gritos de medo e a correria entre os foliões vieram
tomar o som ambiente. O gemido de um alarme, vidros se quebrando, choro de
adultos e crianças completaram a sinfonia. Lojas e casas passaram a ser alvo
dos saqueadores e desabrigados, gente de bem em outro tempo. De repente algo
vem cortar o calor do empurra-empurra e gelar a espinha dos que estavam nas
ruas. Começou com um ponto de luz, avermelhado, cortando a neblina e em poucos
instantes era uma legião luminosa como se as estrelas descessem a Terra. Eram
os religiosos com tochas nas mãos. No meio deles o andor puxado por um carro de
bois e com luzes de natal para dar destaque. Caminhavam lentamente cantando uma
melodia seca e arrastada, em latim. Do outro lado, os carnavalescos retomaram a
sua posição formando uma ala de resistência à passagem dos fieis. Era a batalha
final, entre virtudes e vícios, que se iniciava.
Minutos antes
desses acontecimentos, o Cap. Carlos tomava seu banho. Como já era de se
esperar, a energia foi cortada, talvez um black-out proposital – as pessoas
estavam realmente loucas. O banho frio já não interessava ao capitão; se
enrolou numa toalha e foi atrás de seu antigo lampião. Encontrou-o no lugar
onde havia deixado há dois anos, quando usou pela ultima vez. O querosene que
alimentaria a chama não era muito, mas o suficiente para aquela noite. Acendeu
o pavio, vestiu a roupa de dormir, que podia ser qualquer uma, buscou um de
seus livros, fechou a janela e sentou-se na poltrona. O livro, não por acaso,
tinha o conto “A cartomante”, de Machado de Assis. Ele tinha escolhido para
aquela noite essa leitura, pois achava divertidíssimo o desfecho da narração e
também julgou o texto pertinente ao momento que estava vivendo.
A pouca luz do
lampião somada ao barulho infernal de samba que vinha da rua dificultavam a
leitura do velho. Mais o fogo fraco que a folia, mas ele preferia por a culpa
nos da rua, tanto que tomou a bengala e foi ate a janela tirar satisfação. Ele
nunca fora de criar caso, mas tudo tem um limite e esse foi ultrapassado quando
os carnavalescos passaram a tocar sem a menor preocupação com o ritmo. Abriu a
janela e não encontrou o que esperava. Na verdade, não encontrou nada, pois a
rua, a cidade, e quem sabe o mundo estava coberto por uma nuvem rasteira. Então
voltou para a poltrona, pegou o livro e tentou ler mais algumas páginas. Foi em
vão, o seu coração disparado repassava a inquietação para os olhos, que não conseguiram
mais se fixar em ponto algum. Ora olhavam a janela aberta e a neblina que
entrava em seu apartamento, ora olhavam o livro na tentativa de concluir a
leitura, ora passavam pelo fogo do lampião, cada vez menos brilhante. Fez-se
silencio na rua. O velho fechou os olhos para tranqüilizar a alma.
Nessas
circunstancias, veio em sua mente o final do conto. Não se sabe se por lapsos
na memória ou pela carência do estilo, aquela historia, que lhe causava risos,
pareceu trágica, estúpida. Sentiu uma fisgada no peito. Entra na sala um ruído
longo e estridente – eram as trombetas do apocalipse. O Cap. abriu os olhos,
mas a imagem era turva. Passou a mão nas vistas para tirar o embaço, que
insistiu em ficar. A chama, que avermelhava a neblina, parecia sentir o frio do
ambiente e se acovardava. Outros sons, gritos de desespero, choro e ranger de
dentes – os dentes do Capitão – invadiam o apartamento. Este já não parecia tão
familiar, suas dimensões oscilavam do infinito ao tamanho de uma caixa. Os
livros se perdiam no espaço e do chão surgiam enormes cordilheiras formando um
cerco. Agora, eram os cavaleiros que se aproximavam com suas espadas de fogo –
foi possível ouvir sua cavalgada e ver a luz de suas laminas. Um coral
celestial anunciou a chegada do Juiz.
O Cap. Carlos
Alvarenga sentiu uma dor fina, uma agulhada quente que lhe subia pelas costas.
Com o rosto transfigurado pela dor ele segurou firme sua bengala e arriscou alguns
passos em direção a janela. A intenção era fechá-la para que a credulidade
daquela gente e a maldição imposta sobre ela, quer seja pelo céu quer seja pelo
inferno, não viesse afligir quem nada tinha com isso. Mas a cada movimento
realizado com custo pelo velho, dobrava a distancia, mais forte cantavam os
anjos e gritavam os demônios. A janela era apenas um ponto no vazio, rodeada de
montanhas angulosas e sombrias. Deu mais um passo, abriu-se uma vala, pisou em
falso, vacilou a bengala e caiu para não mais levantar. Olhou para traz e viu o
lampião a menos de um metro. O seu vidro sujo pela fuligem pareceu adorável ao
velho capitão. Pode ver aquele pavio sustentando o fogo que logo se apagaria:
era chegado o fim.
Na manhã
seguinte, eram só corpos jogados no chão. Por todos os lados se via restos de
uma civilização. Se restasse algum antropólogo, esse teria muito trabalho em
descobrir a causa daquela destruição. Havia evidencias de guerra, mas também
podia ser a celebração de uma festa ou de um rito sagrado. Os artefatos
encontrados seriam dos mais variados, criando um ambiente ambíguo. No entanto,
não foi preciso nenhum cientista para explicar o que ocorrera naquela noite. Aquelas
pessoas jogadas nas ruas sabiam bem toda a historia. Bastou que uma delas
levantasse de seu sono. Viu o sol brilhando novamente, olhou tudo a sua volta e
gritou pela vida. Então foram outros que se levantaram e acharam maravilhoso o
engano cometido dias atrás. Afinal, não era o fim do mundo. Quis os céus
adiá-lo ou teriam os homens extrapolado as evidencias? Não fez muito diferença
para quem ficou. Houve sim, um instante de vergonha do que se passou e mesmo
medo do que viria, mas logo entenderam que, tento todos cometido o mesmo erro,
estavam livres de acusação. Essa lógica trousse paz e liberdade para as
pessoas.
Já eram cinco
da tarde, quando um dos freqüentadores da padaria e amigo do Cap. Carlos,
lembrou-se dele. Se deu conta que este, velho militar, homem sério e convicto
de suas idéias, podia julgar e condenar a atitude ridícula tomada pelos outros.
Ele foi o único que se manteve firme, não mudando seu posicionamento apesar de
toda a pressão e instabilidade social. O Cap. Carlos estava acima de qualquer
outra criatura na face da Terra. Mas não seria capaz de desfrutar os seus
benefícios.
Seu amigo de
refeições e reflexões subiu ao apartamento, bateu na porta do velho pela
primeira vez, e aguardou. Não obtendo resposta empurrou a porta. Viu os livros
jogados no chão, a poltrona virada de costas para ele, a janela aberta e o
lampião apagado. Deu mais alguns passos em direção a poltrona, chamando pelo
capitão...
Instantes
depois subiram muitas outras pessoas ao apartamento, entre elas um médico que
constatou o infarto. O mundo estava livre do juízo.
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